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Tabu
Um filme de Miguel Gomes
Portugal. 2012. 2h00
Com Teresa Madruga (Pilar), Laura Soveral (Aurora idosa), Ana Moreira (Aurora jovem), Henrique Espírito Santo (Gian Luca Ventura idoso), Carloto Cotta (Ventura jovem), Isabel Cardoso (Santa), Manuel Mesquita (Mário)
Prémio Alfred-Bauer, Berlinale 2012

1. Em poucas palavras

A primeira parte de Tabu intitulada "Paraíso Perdido" desenrola-se na Lisboa contemporânea e interessa-se por Pilar, uma quinquagenária membro da comunidade cristã de Taizé, que dedica o seu tempo aos outros e a diversas boas causas. Trata de vez em quando da sua vizinha idosa Aurora que, atingida por uma demência senil, sente-se perseguida pela sua empregada negra Santa e abandonada pela sua filha. Mas a devoção de Pilar parece não ser reconhecida nem pela sua vizinhança nem pela idosa que se refugia nas suas obsessões

A morte inesperada de Aurora vai desvendar um passado profundamente escondido, na segunda parte do filme: "Paraíso". Será Gian Luca Ventura, um amante de Aurora desde há muito desaparecido, que revelará a Pilar e a Santa a história oculta da idosa, a de um amor clandestino que os reuniu em África, numa colónia portuguesa que enfrentava na altura as primeiras convulsões ligadas à luta pela independência. A segunda parte, marcada pelo selo da memória, abandona o realismo da primeira parte em favor de uma estética muito mais distanciada, quase onírica.

2. Primeira abordagem

A maioria dos espetadores será sensível à originalidade estética e cinematográfica de Tabu, filmado a preto e branco e num formato desusado, mas poderemos também interrogar-nos sobre o seu real alcance: o filme distingue-se particularmente por uma rutura narrativa, que nos transporta do presente ao passado, cativando o nosso interesse de uma personagem a outra, de Pilar, lisboeta crente e dedicada ao próximo, a Aurora, uma idosa, sem dúvida senil, cuja história inesperada e romântica nos será revelada pelo seu antigo amante.

Estas duas partes, muito diferentes, parecem ligadas por um ténue fio, apesar de a personagem Aurora estar presente em diferentes idades. Se cada um é naturalmente livre de interpretar à sua maneira este díptico, assim como outras características estéticas de Tabu, podemos, no entanto, sugerir algumas pistas de reflexão para alimentar a discussão. Três eixos de análise principais podem ser assim considerados.

3. A história de uma paixão

Identificamos facilmente uma série de analogias e de contrastes entre as duas partes do filme, cada qual encenando uma protagonista feminina (Pilar/Aurora), uma na idade madura, a outra em plena juventude, uma guiada pelo amor pelos outros, a outra dominada por uma paixão muito mais pessoal, se não até egoísta. O romantismo do "Paraíso" colonial passado contrasta também com o realismo quotidiano da Lisboa contemporânea.

3.1. Contrastes

O que melhor caracteriza efetivamente esta primeira parte é, sem dúvida, a atmosfera sem brilho e uma sensação de espera inacabada. Uma das primeiras cenas mostra-nos, por exemplo, Pilar a ir buscar ao aeroporto Maya, uma jovem polaca, que se diz apenas ser amiga de Maya, a qual não pôde vir a Lisboa: o espetador percebe, no entanto, imediatamente que se trata de uma mentira e que a jovem realmente não quer ficar na casa dessa senhora idosa - talvez preferindo ficar com amigas da sua idade. Pilar fica na expectativa, não manifestando nem raiva nem amargura.

De igual modo, na sequência seguinte, Pilar ouve pacientemente e sem reagir a velha Aurora contar-lhe um sonho repleto de macacos peludos e com um revisor de comboio cuja máquina de venda de bilhetes parece um caça-níquel, sonho que é suposto explicar o facto de ter perdido todo o seu dinheiro no casino... Veremos também Pilar participar numa manifestação a denunciar a passividade da ONU face a um genocídio sobre o qual o espetador não terá, no entanto, qualquer esclarecimento: cheia de boa vontade, animada por uma fé sincera, dedicada ao próximo, Pilar parece enfrentar um mundo imóvel, insensível ou indiferente tanto à sua presença como à sua ação.

Pelo contrário, a única pessoa que parece interessar-se por ela, um amigo pintor, apenas recebe dela pouca atenção, uma atenção por vezes mesmo embaraçada, quando ela pendura na parede o quadro que ele lhe oferece, antes de o despendurar pois na realidade não lhe agrada. No entanto, há outra cena ainda mais reveladora a este respeito, quando os vemos aos dois no cinema, ele adormecido e ela a chorar em silêncio ao som da música que passa, uma versão portuguesa de "Be My Baby", do grupo The Ronettes (1963).

À saída do teatro, o seu velho amigo deseja-lhe um feliz ano novo e faz uma declaração de amor desajeitada e embaraçada, antes de lhe oferecer... Um novo quadro! O tom da cena vacila entre a emoção e o risível, apesar de o espetador se aperceber facilmente que esse amor, exprimido de forma um tanto ou quanto ridícula, não é partilhado por Pilar. Todas as cenas da primeira parte se desenrolam no mesmo clima, um pouco pesado, reflexo de uma existência sem alegria e que parece literalmente suspensa.

O contraste é, desde logo, notável com a paixão presente na segunda parte, caracterizada pelas suas explosões, as suas reviravoltas abruptas e o seu epílogo trágico. No entanto, surgem uma série de ligações, por vezes ténues, entre estas duas partes desconexas.

3.2. Ligações e analogias

Recorde-se que o filme começa com uma sequência de algum modo estranha: mostra um explorador português no século XIX a penetrar no "coração do continente negro" (não por gosto pela aventura ou por uma vontade superior, do rei ou de Deus, mas por uma dor de coração causada pela morte de uma mulher amada), antes de, por sua vez, morrer devorado por um crocodilo tão melancólico quanto a sua vítima... Este prólogo, onde adivinhamos uma ponta de ironia, acaba por ser um filme a que Pilar assiste, sozinha num quarto escuro. Esta história de amor trágico, que se situa num contexto colonial, surge assim imediatamente marcada pelo selo da ficção cinematográfica na qual Pilar parece estar complacentemente mergulhada. Pilar será vista de novo com o seu amigo pintor a assistir a outra projeção que parece profundamente comovente. Será desde já uma maneira de o realizador Miguel Gomes sugerir que uma paixão amorosa não passa de um sonho ou de uma ficção, ou ainda de uma compensação imaginária para essa personagem mergulhada num quotidiano sem brilho?

Essa temática amorosa parece de seguida esvanecer-se, apesar de ser evocada acidentalmente por Aurora, que conta o seu sonho após o seu infortúnio no casino: evoca esta amiga, esposa infiel desse homem peludo como um "macaco", confirmando o ditado: "sorte ao jogo, azar no amor". Mas esta citação acidental num sonho razoavelmente absurdo é facilmente ignorada pelos espetadores, como será seguramente o caso com a música que Pilar ouve no cinema com as lágrimas nos olhos: será a mesma canção - "Be My Baby" ­ que será interpretada na segunda parte do filme por Gian Luca com sua banda, antes de se separar por vários meses da sua amante. Neste momento, a encenação salientará a emoção dos dois amantes, Aurora ouvindo essa música no rádio, sacudida por soluços, e depois, na cena seguinte, Gian Luca sentado à bateria, literalmente abatido pela dor. O amor, independentemente de ser realmente vivido ou imaginado por Pilar no cinema, surge assim como vetor essencial de intensa emoção para os personagens numa ou noutra parte do filme.

De modo mais formal, notamos também que as duas partes do filme são divididas em sequências temporais explícitas, a primeira em dias (de 28 de dezembro de 2010 a 3 de Janeiro de 2011), a segunda em meses (de outubro a agosto, sem precisão do ano). Esta ênfase atribuída ao fluxo temporal diferenciado pode, provavelmente, ser entendida como uma forma de realçar o contraste entre a intensidade da paixão que acelera o fluxo temporal de um quotidiano que parece, pelo contrário, abrandá-lo ou até paralisá-lo.

Portanto, podemo-nos questionar se não devemos interpretar literalmente o título das duas partes: Paraíso perdido/Paraíso? Num presente congelado, dececionante, inacabado, moraria a lembrança de um passado mais forte, mais intenso, mais apaixonado. Assim, a declarações de Aurora que, na sua última hospitalização, fala de um crocodilo que se escondia na casa de Gian Luca Ventura, parecem absurdas [1] tanto a Pilar (que responde apenas que deve descansar...) como aos espetadores, mas dentro de pouco, essas declarações revelar-se-ão perfeitamente sensatas, por invocarem um passado de facto enterrado, mas que poderá ter tido o sabor do paraíso, como o do fruto proibido.

4. Um passado que não passa...

O título da segunda parte do filme, "Paraíso", poderá, no entanto, chocar um certo número de espetadores, na medida em que esta história de amor, muito romântica e melancólica, tem como pano de fundo uma colónia portuguesa em África[2], em breve abalada pelas convulsões da guerra de independência. Veremos nomeadamente os colonos a treinar o uso de armas, ao mesmo tempo que os dois amantes, personagens principais desta história, não participam no exercício e parecem secretamente alheados deste universo.

Enquanto a câmara nos mostra os negros relegados à condição de meros servos ou de mão-de-obra agrícola explorada em campos íngremes, é difícil imaginar que o paraíso em questão seja outra coisa para além do mundo fechado dos brancos.

4.1. Entre grandes descobertas e colonização

Se Portugal é hoje em dia um país da Europa povoado por apenas dez milhões de habitantes, foi também o iniciador, a partir de finais do século XV, do que os livros de história apelidam sempre por Grandes Descobertas. Esta era da exploração do mundo por navegadores destemidos é ainda hoje para Portugal, mas também para a Europa, sinónimo de epopeia - uma epopeia particularmente celebrada por Luís de Camões nos seus Lusíadas, publicados em 1572. Sem dúvida alguma, tal imagem de glória e de heroísmo foi repetidamente posta em causa, especialmente devido às longas guerras coloniais em África pelo regime ditatorial de Salazar, e em seguida pelas profundas transformações da sociedade portuguesa após a revolução dos cravos de 1975, que instaurará um regime democrático e permitirá a integração do país na União Europeia. Mas esse passado continua a ser ambivalente, mais ou menos conflitual, mais ou menos escondido, mas sempre presente.

O prólogo de Tabu reproduz assim o imaginário mais convencional relativamente à exploração colonial em África, com esse aventureiro que se afunda, acompanhado apenas por servos negros que o transportam na selva hostil, embora a ironia do cineasta seja óbvia e saliente a irrealidade da sequência. De forma mais clara, a voz do narrador revela que o que motiva o personagem não são as razões oficiais para o desígnio colonial, como a glória de Deus ou do Império, mas uma surda dor de coração que o levará finalmente ao suicídio quase risível: o homem branco no cinema aparece como desprendido dos seus próprios atos, que "na realidade", participam em todo o desígnio de colonização de África, com toda sua violência e brutalidade.

Encontraremos o mesmo desprendimento na segunda parte do filme, "Paraíso", onde os dois personagens principais se isolam cada vez mais na sua paixão ilegítima. Mas mais explicitamente, constatamos que apenas os colonos parecem ter sentimentos importantes como o amor, o ciúme, a amizade, os remorsos, enquanto os negros são reduzidos a meros figurantes obedientes. De forma menos clara do que no prólogo, mas no entanto sensível, a encenação revela, graças nomeadamente ao distanciamento da voz do narrador, a ilusão em que vivem os personagens, a sua indiferença face ao mundo real que os rodeia, o seu isolamento num universo maioritariamente imaginário.

Na mesma perspetiva, como não sorrir face à orquestra de Gian Luca Ventura, interpretando convictamente um êxito musical mundial, cuja letra é tão romântica quanto convencional, quando o país está à beira de uma guerra longa e violenta?

4.2. Um presente ambíguo

A mesma reflexão sobre a representação colonial em Tabu leva a interrogarmo-nos acerca da primeira parte do filme, aparentemente mais realista, que seria o espaço temporal de um "Paraíso perdido". São as relações entre a Aurora envelhecida e a sua criada ou auxiliar Santa que se impõem em primeiro plano. Apercebemo-nos assim facilmente de várias características contrastadas entre essas duas personagens: uma é agora muito idosa, afetada pela senilidade, que em tempos teve uma fortuna respeitável, mas que agora se encontra em grande parte delapidada - como prova o casaco de pele que se apresta a ir trocar a uma casa de penhores; a outra é mais jovem, sem grandes recursos financeiros, possivelmente imigrante desde há pouco - Santa tenta aprender a escrever lendo uma versão portuguesa de Robinson Crusoé, apesar de esse célebre romance de Daniel Defoe ilustrar, como é bem conhecido, a superioridade do homem branco sobre os "autóctones", à imagem de Sexta-feira que se tornou o servo dedicado do seu dono Robinson. Apercebemo-nos da existência de relações de dominação, ainda que aqui assumam a forma de uma relação de serviço.

Mas a distância entre uns e outros parece continuar a ser grande, como evidencia, de forma um tanto divergente, a "loucura" de Aurora, que se sente perseguida pela sua auxiliar, que não hesita em tratar por monstro ou bruxa ­ lembrar-nos-emos na segunda parte, onde a jovem Aurora despedirá um cozinheiro, um tanto ou quanto bruxo que, para além de sua gravidez, tinha-lhe previsto um fim solitário e amargo.

O mundo de uns e outros parece continuar a ser compartimentado e o espetador não saberá nada acerca dos verdadeiros sentimentos que animam Santa, que parece tão impenetrável quanto eram os negros na época colonial, meros figurantes da segunda parte do filme. Enquanto Pilar tenta convencê-la a prestar melhores cuidados a Aurora, Santa responde, apresentando-se como uma serva obediente, sujeita apenas às ordens da filha da idosa (que provavelmente paga seu salário).

Alguns espetadores considerarão, sem dúvida, esta interpretação forçada e observarão que a situação colonial quase não é evocada no filme, sendo como um pano de fundo pouco definido. O filme de Miguel Gomes não se limita, de facto, à simples ilustração de uma tese, mesmo metaforicamente. Convém, por isso, ter em conta a dimensão estética que cria o contraste visível entre as duas partes.

5. Um distanciamento estético

Os espetadores menos sensíveis à estética cinematográfica notarão certas características muito visíveis de Tabu, como a utilização do preto e branco ou de um formato de imagem relativamente estreito (1,37:1)[3], hoje em dia inabitual no cinema. Os cinéfilos lembrar-se-ão com certeza que o filme de Manuel Gomes tem o mesmo título que um grande clássico, a última realização de Friedrich Murnau, de 1931 e constituído também por duas partes principais: "Paradise" e "Paradise lost" (na versão inglesa), portanto idênticas, mas invertidas em relação ao filme de Gomes! Para além disso, como o próprio título sugere, o filme mudo de Murnau conta também a história de um amor proibido, apesar de o contexto ser bem diferente, já que a ação se desenrola na ilha de Bora Bora, na Polinésia Francesa. Algumas imagens do filme de Gomes parecem mesmo diretamente inspiradas, se não decalcadas, do seu antecessor, como é o caso do breve plano onde vemos Gian Luca a soprar numa concha em espiral, uma imagem repetida várias vezes por Murnau, ou ainda aquele filme que o marido de Aurora [4] grava com uma câmara super 8 à beira de uma cascata e que, inevitavelmente, lembra uma das primeiras sequências do Tabu original, onde os dois amantes se encontram pela primeira vez perto de uma cascata semelhante.

5.1. Hollywood clássico?

O estilo dos filmes de Gomes - nomeadamente quando se analisa o prólogo e a segunda parte - apresenta mais semelhanças com os filmes clássicos de Hollywood, que supostamente se desenrolam em África, do que com o estilo do cineasta alemão. A característica mais marcante desses dois episódios em África é seguramente a ausência de diálogos audíveis, um processo bastante fora do comum que recorda, como é óbvio, o período do cinema mudo. Na verdade, a banda sonora do filme de Gomes é muito elaborada: se se prestar atenção, nota-se que essencialmente os diálogos são "apagados", ao mesmo tempo que uma parte dos sons ambientais e a música de fundo estão bem presentes! Para além disso, a voz off de Gian Luca idoso, mas também a de Aurora idosa que lê as suas cartas de juventude são também audíveis e desempenham um papel essencial na compreensão da história.

Este método é suficientemente original para que todos os espetadores o notem facilmente - por exemplo, ouve-se o tiro que Aurora dá, mas nenhum som da disputa entre os dois homens que o antecedeu. A capacidade do realizador, em particular na utilização da voz off, é suficiente para que o processo não seja considerado como totalmente artificial. Esta segunda parte do filme apresenta-se como uma memória reconstituída em imagens e a ausência de diálogos será notada pela maioria dos espetadores, como um sinal do caráter reconstituído dessas imagens. As referências ao cinema mudo, "a arte do passado", reforçam esta impressão, mesmo apesar de os eventos encenados se desenrolarem bem mais tarde, aparentemente na década de 60, se consideramos a indumentária das personagens e as referências musicais.

Notamos também diferentes características mais irónicas que levam os espetadores a considerarem as personagens e os acontecimentos com um certo distanciamento. É o que acontece particularmente no prólogo, onde os propósitos enfatizados do narrador (que designa, por exemplo, o explorador como uma "criatura melancólica"), a postura do personagem literalmente oprimido pela dor, a música do piano ligeiramente ritmada pela mecânica, o papel quase absurdo atribuído ao crocodilo, que se tornou num instrumento de suicídio, refletem um espírito de escárnio, ou até de humor negro que marca toda a sequência.

A ironia não está tão presente na segunda parte do filme, marcada pela melancolia através da voz grave de Gian Luca. Apercebemo-nos repetidamente, no entanto, da presença de sinais de escárnio para com as personagens em cena: na separação dos dois amantes, por exemplo, o rosto repleto de lágrimas de um ou de outro ao som de "Be My Baby" aproxima-se da caricatura, embora a sua emoção possa ser facilmente partilhada. Outras atitudes, como o passo decidido de Aurora na selva, com a arma em punho, o homicídio do amigo de Gian Luca por Aurora (com a câmara a inclinar-se a 90°, como que assumindo o campo a visão do morto), ou ainda a bofetada dada pelo marido ao amante, imediatamente atirado para o chão poeirento, podem parecer situações artificiais, quase cómicas. Reconhecemos também uma linguagem gestual próxima do cinema americano clássico ou mudo. Enfim, trata-se, por vezes, de detalhes quase impercetíveis, como a sessão fotográfica do grupo de música suspenso na árvore, quase demasiadamente longa ou daquele gesto involuntariamente obsceno de Aurora que mostra entre as suas mãos o tamanho presumido do pequeno crocodilo desaparecido, ou até mesmo do nome desse crocodilo, Dandy, supostamente romântico, de acordo com Gian Luca, mas que soa hoje como uma lembrança cómica do famoso filme australiano Crocodile Dundee ![5] Toda a história em torno deste pequeno crocodilo, que repete desfasadamente a do prólogo, surge aliás como uma espécie de MacGuffin, uma falsa pista destinada a despistar maliciosamente o espetador.

O trabalho da banda sonora e o uso preferencial da voz off, as características de uma ironia mais ou menos ligeira, bem como as referências cinematográficas diversas, mas claras, contribuem seguramente a "despojar" toda a segunda parte, obrigando o espetador a distanciar-se com mais ou menos intensidade dos eventos representados. Resta então interrogarmo-nos acerca da encenação na primeira parte do filme, aparentemente tratada de forma mais realista.

5.2. Uma realidade fragmentada

A estética da primeira parte parece, à primeira vista, pouco surpreendente, mergulhada na realidade cinzenta e chuvosa dos meses de inverno, ao mesmo tempo que o espaço parece apertado, com os personagens confinados aos seus apartamentos, na maior parte das vezes filmadas em planos próximos (que contrastam com muitos planos gerais da segunda parte, muitas vezes abertos sobre vastas paisagens abertas). A montagem dessas diferentes sequências é também importante, pois cada uma é apresentada de forma intermitente, quase incoerente, como um sainete inacabado. Assim, após ter ido buscar Aurora ao Casino Estoril e tê-la ouvido contar os seus sonhos quase sem interrupção nem reação, Pilar aparece no seu apartamento mergulhado na escuridão, enquanto se ouve o som de uma chuva forte no exterior; o barulho de um telemóvel surge repentinamente, intrigando Pilar que, depois de alguma hesitação, o descobre fechado no frigorífico!

As ligações entre as diferentes sequências são subtis, muitas vezes problemáticas, nas quais os eventos estão repartidos de uma maneira que pode parecer aleatória ou arbitrária, deixando particularmente o seu sentido em suspenso. Esta realidade fragmentária, inacabada, incerta contrasta com o aspeto clássico da narrativa presente na segunda parte, onde os eventos se desenrolam de forma tão rápida quanto coerente. O "Paraíso perdido" surge assim como um mundo ameaçado pela falta de sentido e pelo absurdo em que a "loucura" Aurora não passa de um exagero. Mas, precisamente por esta loucura ser apenas aparente e o vestígio de uma história escondida e despercebida pelos outros personagens, a ficção traduzida em imagens na segunda parte do filme parece esteticamente talvez mais "verdadeira" e, certamente, mais intensa do que esta realidade cinzenta e diária.

Cabe, no entanto, a cada espetador decidir se o paraíso de uma paixão cinematográfica vale mais do que a prosa do quotidiano. Sem prejuízo da opinião de cada um, observaremos que a segunda parte do filme, que parece imitar, como referido, o cinema clássico de Hollywood, contém pelo menos uma cena que teria sido impossível nesses filmes (devido às normas puritanas do Código Hays), a que ilustra o amor físico unindo Aurora e Gian Luca: essa cena, reforçada pela voz profunda de Gian Luca, que explica como essa paixão o transformou é tratada de forma direta, sem ironia ou outro processo de distanciamento e culmina com um olhar da jovem para a câmara, interpelando diretamente o espetador. Notaremos talvez a preferência do cineasta pela intensidade de um amor perdido, apesar de salientar repetidamente a irredutibilidade do filme de ficção nesta reconstrução cinematográfica.

6. Questões ou situações do filme a debater

  • As duas partes principais do filme Tabu intitulam-se Paraíso perdido/Paraíso: esses títulos merecem, sem dúvida, uma atenção particular. Devemos interpretá-los à letra ou são ligeiramente irónicos? E o próprio título do filme, Tabu, que sentido devemos atribuir-lhe? O que verdadeiramente se "perdeu" entre essas duas partes?
  • O cenário histórico do filme, que se desenrola numa colónia portuguesa (hoje independente), pode igualmente ser objeto de discussão: será que modifica o sentido da história de amor encenada ou não passa de um cenário secundário e indiferente? Interrogar-nos-emos também sobre a forma como esse passado reaparece ou transparece na primeira parte do filme, "Paraíso perdido", em que a história se desenrola na Lisboa contemporânea.
  • As duas partes principais do filme caracterizam-se por uma estética contrastada. Certos espetadores notarão, sem dúvida, a presença de influências ou de citações de outros filmes mais antigos. Mas qual é o sentido dessas referências? Podemos falar de ironia, de distanciamento, de um processo de mise en abyme? Por fim, terão os espetadores sido sensíveis ao trabalho relativamente à banda sonora, nomeadamente na segunda parte? O processo parece original, adequado ou talvez artificial? E as diferentes escolhas musicais? São pertinentes ou notáveis?

1. Muitos espetadores não se recordarão dessas declarações (quando muito, a evocação do crocodilo) e consideram desde logo que o nome de Ventura surge apenas quando Aurora o desenha com a ponta dos seus dedos na palma da mão de Santa (que o copia num pedaço de papel e que depois entrega a Pilar). Mas, deitada numa maca, Aurora fala precisamente de Gian Luca, depois de Ventura, sem percebermos que se trata da mesma pessoa e que o crocodilo de facto existiu...

2. O filme foi gravado em Moçambique, ex-colónia portuguesa, que se tornou independente a partir de 1975, após uma longa guerra que começou em 1962. No entanto, o monte Tabu, citado no filme, é fictício e Moçambique não é citado como tal.

3. Trata-se da relação entre a largura e a altura da imagem: o formato 1,37:1 (ou 4:3) designa assim uma imagem relativamente quadrada, quando a partir do final dos anos 50, para fazer face à concorrência da televisão, o cinema começa a privilegiar um formato mais comprido (1,66:1 ou 1,85:1) ou até muito comprido, como o cinemascópio (2,66:1).

4. O nome da heroína de Miguel Gomes é talvez também uma alusão a um outro célebre filme de Murnau, Sunrise (1927), que podemos traduzir em português por AuroraŠ

5. Este jogo de palavras é revelado por Christophe Beney.


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